Antártida: cooperação científica dá lugar à competição geopolítica e comercial, onde Brasil pode perder espaço
O Brasil está diante de uma escolha estratégica: investir e se manter protagonista, ou correr o risco de ser espectador em um processo...
The Conversation|Do R7
A Antártida tornou-se peça-chave do xadrez geopolítico contemporâneo. Em um cenário internacional marcado por disputas de poder, grandes potências enxergam o continente gelado como território estratégico para a projeção de influência global, segurança e o a recursos naturais. A intensificação da presença de Estados Unidos, China e Rússia na região, com investimentos em infraestrutura, tecnologia e pesquisa, exige que o Brasil reavalie sua postura e fortaleça sua política para garantir relevância e defesa de seus interesses no Polo Sul.
A presença brasileira na Antártida se consolidou há quatro décadas, com o início do Programa Antártico Brasileiro (PROANTAR) e a instalação da Estação Antártica Comandante Ferraz. Inaugurada em 1984 na Ilha Rei George, a base foi reconstruída e modernizada, reabrindo em 2020 após um incêndio que a destruiu em 2012.
Com laboratórios de ponta, capacidade para dezenas de pesquisadores e operações o ano todo, a estação brasileira abriga projetos nas áreas de clima, oceanografia, biologia, glaciologia e geociências. O país ainda opera o módulo Criosfera 1 no interior do continente, utiliza navios de apoio e mantém equipes de cientistas em campanhas sazonais. Toda essa estrutura assegura ao Brasil o status de membro consultivo do Tratado da Antártida, com direito de participar das decisões sobre o futuro do continente.
Mas a dinâmica global mudou rapidamente nos últimos anos. EUA, China e Rússia agora vêem a Antártida como espaço de disputa por poder, informação e possíveis riquezas. Os norte-americanos alertam para atividades de uso duplo, em que pesquisas científicas se misturam a objetivos militares ou de coleta de dados estratégicos. A China expandiu sua presença, inaugurou sua sexta base em 2024 e investe em infraestrutura de comunicação avançada, com capacidade para monitoramento por satélite. A Rússia modernizou instalações históricas e reativou antigas estações, além de ampliar sua logística polar.
O crescimento dessas potências gera pressões por mudanças nas regras atuais, especialmente diante da possibilidade de revisão do Protocolo de Madri a partir de 2048, o que pode reabrir discussões sobre exploração mineral e energética no continente.
Competição comercial toma lugar da cooperação científica
O ambiente polar, antes dominado por uma cultura de cooperação científica, ou a incorporar elementos de competição e vigilância. A instalação de radares, comunicações criptografadas e tecnologias sensíveis aproxima a Antártida do cenário de outras regiões disputadas do planeta. O monitoramento ambiental e o controle sobre áreas de pesca, tráfego marítimo e possíveis rotas de navegação, tornam-se fatores de poder. A presença militar disfarçada de cooperação científica ganhou espaço nos debates estratégicos.
O impacto geopolítico para o Brasil vai além da ciência. O país exerce papel de destaque no Atlântico Sul e construiu histórico de liderança entre os países do Sul Global, defendendo a ideia de governança equilibrada e respeito à soberania dos Estados emergentes. A atuação antártica fortalece parcerias regionais, em especial com Argentina e Chile, e garante o a informações essenciais para o entendimento do clima, dos oceanos e das dinâmicas ambientais que afetam diretamente o território brasileiro. O direito de participar das negociações internacionais depende do compromisso permanente com a pesquisa e com a manutenção da infraestrutura polar.
Há riscos claros de marginalização. Países com presença contínua tendem a influenciar a redação de normas, a divisão de áreas de interesse e o o a recursos estratégicos. O Brasil, ao garantir operações regulares e protagonismo científico, preserva seu espaço em fóruns decisórios: Reunião Consultiva do Tratado da Antártida, a Comissão para a Conservação dos Recursos Marinhos Vivos Antárticos e o Comitê para Proteção Ambiental.
Caso o país se retraia, perde o direito de voto e voz nas discussões, abrindo caminho para decisões tomadas exclusivamente pelas grandes potências. O o a dados meteorológicos, a participação em projetos globais de modelagem climática e o desenvolvimento de tecnologias adaptadas às mudanças ambientais dependem do envolvimento direto no continente gelado.
Região é estratégica na ciência, na economia e na diplomacia
A Antártida influencia o regime de chuvas e os ciclos do Atlântico Sul, impactando agricultura, energia e recursos hídricos brasileiros. O controle sobre informações científicas é também fator de poder econômico e diplomático. Países que lideram pesquisas em mudanças climáticas ganham espaço em negociações sobre comércio, sustentabilidade e financiamento internacional. O monitoramento de possíveis novas rotas marítimas, diante do degelo polar, pode redefinir fluxos comerciais e rotas de exportação.
A diplomacia brasileira precisa atuar em múltiplos níveis. O fortalecimento do PROANTAR, a modernização da Estação Comandante Ferraz e a ampliação da rede de cooperação científica com países do hemisfério sul tornam-se prioridades de política externa. O país pode liderar uma agenda que combine pesquisa, defesa ambiental e proteção de interesses estratégicos. A construção de alianças com parceiros regionais e africanos reforça o posicionamento do Brasil diante das grandes potências, ampliando sua capacidade de barganha.
O futuro da Antártida será definido nas próximas décadas. O Brasil está diante de uma escolha estratégica: investir e se manter protagonista, ou correr o risco de ser espectador em um processo de redefinição das regras globais. O continente gelado pode parecer distante, porém suas dinâmicas já moldam o presente e o futuro da segurança, do desenvolvimento e da soberania nacional. Manter-se relevante na Antártida é garantir que o Brasil tenha voz ativa em um dos tabuleiros mais sensíveis da geopolítica contemporânea.
Armando Alvares Garcia Júnior não presta consultoria, trabalha, possui ações ou recebe financiamento de qualquer empresa ou organização que poderia se beneficiar com a publicação deste artigo e não revelou nenhum vínculo relevante além de seu cargo acadêmico.